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Lopson

O País da Morte, como testemunhado por Kino

3 mensagens neste tópico

Uma curta história que escrevi numa longa noite de Doors, algum Post Rock e um pouco de Ash Ra Tempel. Música é o meu petróleo para escrever.

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No horizonte das vastas, infinitas planícies, erguia-se uma fortaleza de nevoeiro, incrustada à terra, como uma borbulha indesejada na cara. A estrada, terra batida coberta de ervas daninhas, convidava-nos para o seu interior, servia de afrodisíaco para aumentar o nosso apetite. Como um par de cães à procura da cadela em cio, percorremos todo o caminho a alta velocidade, tudo à nossa volta desfazia-se em linhas mal definidas, tudo se fundia no mesmo tipo de matéria, tudo se tornava éter, enchia os meus pulmões com uma substância excitante. As pedras da estrada saltitavam, congratulando a nossa chegada a esta capital de alucinações.

“Ooh, tem um aspecto completamente diferente dos outros países que visitamos até agora!”.

Até Hermes estava a ser puxado para aquele vácuo que, apesar de desconhecido, nos parecia familiar.

Por entres as nuvens de fumo e a fragrância de erva a ser consumida, erguiam-se casas, verdadeiros monumentos à transcendência do espírito humano, à elevação dele até aos céus e sua consequente fusão com o Sol e a Lua e os astros celestiais, seres inalcançáveis aos nossos corpos, mas sempre próximos de nós. Todos os edifícios estavam virados para Nascente, como que à espera da bênção da estrela-Mãe, porém, o portão de entrada encontrava-se a Poente.

Parei o motor de Hermes, de forma a o poder empurrar facilmente e poupar gasolina, o silêncio reinava. Nenhum guarda nos esperava, apenas uma placa, sozinha, em pé, vigilante e generosa, “Este é o país do Rei Lagarto. Estranho, sê bem-vindo à nossa humilde casa. O Rei é generoso, és livre aqui dentro. Junta-te. Torna-te um de nós.”.

“Bem, não estava à espera disto.” A minha cara assumiu uma posição desconfortável, reflexo do que estava a passar pela minha mente. Um país sem guardas à entrada? Impensável, decerto, mas existente. Claramente, os habitantes desta Fortaleza não poderiam ser humanos normais. Para além do mais, um Rei Lagarto? A que se referiam eles? Como não viajava sozinha, decidi perguntar ao meu parceiro de viajem a sua opinião. Mas, como esperava, a sua resposta foi leviana e despreocupada,

“Por mim visita-se. Mas não é usual tu não quereres visitar um país novo.”

A sua resposta trespassou-me como uma flecha a viajar a alta velocidade pelo ar, à procura do seu alvo.

“Tenho um mau pressentimento, é só isso.”

As pesadas portas de metal e madeira rangeram, como se estivessem a reagir ao meu forte empurrão. Poisamos nossos pés neste país. Perante nós estavam apenas ruas desertas, manchadas de vermelho e arco-íris, um roxo palpável envolvia-nos, o fumo que rodeava este local dissipava-se cada vez mais à medida que a minha dor de cabeça aumentava. Tomamos a avenida principal, à procura de pessoas, mas ninguém se revelava a nós, como se tivessem medo de mim. Bem, era ainda cedo, por volta das 7 da manhã, mas mesmo assim…

Mal me habituei à dor de cabeça latejante, comecei a conhecer o significado de prazer, invadia o meu corpo, espalhava-se até às pontas dos meus dedos, dos cabelos, do nariz. À medida que a minha sanidade desvanecia, visões de formas humanas começavam a revelarem-se à minha vista, espectros matinais duma terra de morte. Cada uma delas tinha uma forma diferente, todas elas dançavam ao mesmo ritmo, ao som da mesma música, eram um só ser e vários seres ao mesmo tempo. Olho à minha volta e tudo se havia transformado, como se a cidade estivesse viva, uma reacção à minha presença, tudo me dizia “Sê bem-vinda, viajante de terras distantes, este será o lugar onde ficarás o resto da tua vida”. Não querendo ser mal-educada, agradeci a oferta, mas “a minha estadia será apenas de três curtos dias, duas longas noites”.

Mal terminei falar, os espectros dissiparam-se, fui deixada sozinha de novo. Senti que algo faltava neste quadro, mas as minhas mãos e a minha cabeça estavam leves como nunca tinham estado, senti-me a ser arrastada pelo ar à minha volta. Pareceu-me ouvir algo vindo das minhas costas, uma voz familiar a chamar por alguém familiar, mas prontamente ignorei esse sussurro de Belzebu, andei, corri, tudo à minha volta havia-se tornado colorido, vivo, como uma larva num casulo que acaba de sair da sua armadura de solidão. Enquanto percorria aquele trecho de passeio, senti-me viva e feliz, uma parte integrante daquele cenário improvável e, logicamente, impossível. As casas sorriam para mim, convidando-me para os seus interiores, as suas camas confortáveis, as suas quentes lareiras, sempre úteis no Inverno, as suas delícias culinárias. Entrei e decidi provar uma das várias iguarias à disposição, mas a nada sabiam, pois eram feitas de nada. Senti o meu estômago satisfeito, os risos vindos dos habitantes da residência aqueciam-me alma.

Andei perdida na terra do Lagarto três séculos mais quatro outros, à procura daquilo pelo qual tinha vindo a este lugar, mas a cada passo que dava, o mundo desintegrava-se um pouco mais, o meu cérebro era rasgado em sete pedaços, morria lentamente. Foi então que cheguei a um cemitério, com campas belas. Eram campas largas, sem corpos, com o nome de pessoas do passado, vivas no presente, inexistentes no futuro. Toco nas insígnias ao lado dos estranhos nomes, eram feitas de cobre, formavam um triângulo invertido, cujas pontas eram círculos. Afasto-me desta sepultura de pedra, primeira à esquerda da entrada do cemitério, e atrevo-me a penetrar este local sagrado. No fundo do caminho, encontro vários seres em volta duma campa em específico, todos eles a festejarem um nascimento. “Neste país, as pessoas nascem a partir dos mortos, nunca dos vivos. Viajam da terra dos mortos, florescem neste mundo como uma flor. Crescem como uma árvore. Vivem para toda a eternidade, como os humanos que desejaram ser.”. Subitamente, todos se tornaram para mim e me injuriaram verbalmente, “Elementos estranhos devem ser mortos.”, fugi o mais depressa possível, corri pelas ruas desertas, as pessoas juntavam-se à minha volta, um beco à esquerda, um cruzamento a 20 passos à minha frente, “Rápido!”, corri o máximo que podia, “Rápido!!”, estavam a meros passos de mim, estava rodeada, disparei a minha pistola, matei três antes de me trespassarem com sete lanças na cabeça e outras sete no meu coração. À medida que caía no chão, apercebi-me de quão belo este mundo era, tinha medo de voltar para o meu, o Rei Lagarto sorri para mim, “Pois toda a gente tem de voltar a sua casa”.

Quando os meus sentidos retornaram ao meu corpo, denotei que estava deitada dentro duma confortável cama, colchão estufado com penas, num quarto que me era, de todo, desconhecido. Mal abri os olhos, fui recebida por uma alegre e despreocupada voz. Era a voz de Hermes.

“Kino, estás bem? Pensava que, finalmente, tinhas perdido a tua sanidade!”

Ri-me, porque efectivamente, também eu pensei o mesmo.

“Seria preciso muito mais que isto para me desfazer a mente por completo.”

“Ainda bem, ainda bem…”

O calor de Hermes foi o suficiente para me acordar plenamente. Um homem, completo desconhecido, usando uma máscara para filtrar o ar em redor, estendeu sua mão direita.

“O meu nome é Jacques, e tu quase que passaste para o outro lado.”

Não percebendo do que ele falava, rapidamente perguntei-lhe o que se tinha passado comigo. Momentos antes de ele responder, notei que eu, também, tinha uma máscara colocada na minha cara.

“Há uma eternidade atrás, as pessoas desta terra eram regidas por uma linha de Reis existente desde o início do Tempo. A sabedoria destes Reis havia permitido a nossa existência neste local infernal, onde nada crescia, nada vivia, apenas o ar e o céu azul, azul, viviam. Durante 700 anos, as pessoas trabalharam a terra, nasciam pela terra, viviam pela terra, morriam pela Terra. O tempo passou até ao reinado do décimo sexto Rei, um homem menor na linhagem, mirrado na sua mente, ignorante no seu corpo, pequeno na sua alma, nada fazia para ajudar seu domínio. Porém, a sua negligência haveria de lhe custar todo um Reino, tantas vezes o avisaram disso, mas de todas as vezes, nem uma vez ele reflectiu no que aquelas palavras significavam.

Um dia, entra um viajante envolvido em panos negros, coberto por uma doença contagiosa, tresandava a morte. Infelizmente, como el-Rei havia decidido reduzir o número de guardas às portas do país de forma a ter mais dinheiro para gastar em águas-de-colónia e trapos vindos da capital da Moda, esta pessoa entrou livremente nestas terras abençoadas. Como um Deus da Morte, ele semeou a sua doença por todo o país, tornou-se Rei deste domínio. El-Rei, Sua Majestade, viu-se rodeado cada vez mais de morte, de tristeza pela partida de seus conhecidos, amigos, amados, filhos, mulher. Absorvida mais dor que qualquer ser humano deveria fazer, o Sol lhe iluminou seu cérebro sagrado, recipiente de estupidez e pouco-saber, teve uma brilhante ideia. Matarei toda a gente desta terra, antes que eles me matem a mim com a sua doença infernal. Mas como poderia saber ele que aquele Sol, daquele dia, era falso, uma ilusão de sua mente, o reflexo da sua dor que, por ser tão forte, tinha luz própria? Rapidamente colocou o plano em marcha, envenenou todo o ar, as pessoas começaram a desaparecer uma a uma, primeiro o Sr. Fransk da charcutaria, depois a Srª Xezel da mercearia, um a um tiveram visões duma terra que não era a sua e acabaram por se passarem para esse lugar.

Um dia, el-Rei decide ir à rua, mas nela, apenas encontrou morte. Os corpos estavam espalhados pelo chão, podres e velhos, sem carne e espírito, material para a desintegração inevitável pelo intemporal tempo. Em todas as direcções para que olhava, via apenas os resultados do reinado da Morte. Viu uma mulher morta, apanhou seu corpo, beijou-a na sua testa, “Agora viverei Rei desta terra para toda a eternidade, Rei do nada e do tudo, detentor de terrenos desabitados, desaproveitados, cuja existência é apenas justificada pelos cadáveres e pelas ervas daninhas”, e assim reinou, até se aperceber do erro que cometeu.

Foram 1600 corpos ao todo, todos eles foram enterrados, todos eles empalados pela Morte. Com os seus corações à mostra, el-Rei pode ver facilmente futuros perdidos graças a si, nada ele sentia, infelizmente, pois também ele estava morto. Com o cheiro a morte e o peso de toda a população, ele tentou-se suicidar, mandando-se do terceiro andar dum prédio da praça central, cuja fonte era conhecida e reconhecida nas redondezas. O ar cortou-lhe toda a sua pele na descida, o chão recebeu-o duramente, partiu ambas as pernas e sobreviveu, passou vários dias a lutar pelo direito da sua vida, deitado no chão, a esvaziar o conteúdo dos seus vasos sanguíneos. Lentamente se levantou, decidiu continuar aquilo que havia começado: continuaria a reinar estas terras para todo o sempre.

E assim o tem feito.”

Jacques riu-se.

“Achas que o que o Rei fez foi correcto?”

Foquei a minha visão nele, como se de uma presa tratasse.

“Não.”

A face de Jacques contorceu-se.

“Se tivesse vivido nesta terra, já tinha morto o Rei.”

A face de Jacques desfez-se.

“Mas a Morte já apanhou este Rei, não já?”

A face de Jacques afogou-se em lágrimas.

Levantei-me lentamente, “Mas ele tem que reinar para todo o sempre”, agarrei em Hermes e saímos do país maldito. Dos lados, a Morte desfazia-se em rastos de velocidade, tudo desapareceu ao passar o portão. De longe, o país parecia mais triste do que da primeira vez que havia poisados meus olhos nele. Parecia a ponta dum cigarro a arder lentamente, o fumo a sair, como se alguém estivesse a ter prazer da situação.

“Pobre Jacques. Já viste o que ele sofreu por causa do seu Rei?”

Dei uma sapatada no farol frontal, Hermes reclama amigavelmente.

“Ele era o Rei.”

“A sério?!”

Libertei um leve suspiro.

“No final, só queria libertar as pessoas da dor que elas sentiam.”

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A revelares o segredo da escrita experimentalista?

Poenitentiae! Poenitentiae!

Podes esquecer o lugar de Grande-mestre da ordem da pluma ganzada!

A sério, bom ensaio, não gostei do final, por mim matava-os a todos lol

Supresa, afinal é uma gaja! Didn't see that coming!

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A Kino sempre foi uma lady, Tanuki, apesar da sua cara levantar algumas suspeitas a início. Mas o sexo da personagem até é, de certa forma, irrelevante, so :P para ti.

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