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Lopson

Kino no país do início e do fim

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Parte 1 duma pequena história que tenho andado a escrever há já algum tempo. É um leve cruzamento entre o mundo duma manga chamada "Yokohama Kaidashi Kikou" e as personagens Kino e Hermes de "Kino no Tabi". A única personagem que aparece de Yokohama é a principal, chamada "Alfa".

Bem, que posso dizer, acho que finalmente estou a apanhar o jeito a one-shots. Já tenho tudo escrito, portanto os restantes capítulos deverão sair rapidamente. Divirtam-se! Se encontrarem algum erro ortográfico ou se tiverem algum problema com a minha escrita, avisem-me.

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A estrada bege, de terra batida, pela qual avançamos, recebe-nos carinhosamente, atirando-nos gravilha e poeira, um ritual ao qual já estou habituada. Por muito que me atire, eu nada tenho a temer, pois os meus óculos protegem-me os olhos. O meu cabelo já é outra conversa, mas nunca me preocupei muito com ele, é da forma que passo despercebida. Hermes muito menos tem com que se preocupar, ele é apenas uma mota falante, o metal de que é feito resiste a esta leve agressão.

O calor de Verão é imperdoável, especialmente nesta região, apesar de ser perto da costa. Olhando para o mar, vejo as ondas de calor e da água a fundirem-se no fundo do horizonte, juntas a dançarem aos sabores da Lua. Não desgosto deste tempo, pois permite-me andar sem sobretudo… Sei que devia andar com ele vestido quando ando com o Hermes, não me esqueci das palavras dela, mas não posso ser sempre inflexível nestas coisas e, honestamente, já tomei riscos imensamente maiores que este, não estou preocupada.

Apesar de eu apreciar este tempo, o mesmo não posso dizer do Hermes. Muito ele reclama entre os sons que emite pelo seu tubo de escape. Já tivemos de parar várias vezes ao longo do caminho, com medo que a gasolina se começasse a evaporar nos canos. É triste ver uma obra tão bela como ele a ceder perante a força natural desta região, mas não me atrevo a dizer tal coisa, não quero magoar o coração puro do meu companheiro, único companheiro.

O som das ondas abafa, de certa forma, as queixas do Hermes, o que não é necessariamente bom, pois quando isso acontece, ele acaba por se repetir. Não me importo do ouvir, mas gostava de evitar ter que ouvir tudo o que ele diz duas vezes de seguida, especialmente quando ele mete uma piada pelo meio. Da primeira vez resulta, mas à segunda… Especialmente as piadas picantes que ele conta sem as perceber, confiando plenamente na minha capacidade de compreensão. Às vezes pergunto-me donde é que ele apanha estas piadas. Ele geralmente dorme juntamente comigo, portanto…

O areal comprido, ao longo do qual eu estou a conduzir, está completamente vazio. Aliás, para além dum certo homem de idade que encontrei na última bomba de gasolina a que fui, ainda não vi uma única alma a apreciar este belo cenário. Muitos pássaros, sem dúvida, mas pássaros há muitos, e o pior é que todos eles cantam a mesma coisa, dando mais ênfase à moleza induzida pelo calor, moleza que está a ser um fardo cada vez mais pesado de carregar.

"Hermes, vamos parar por um pouco."

"Sim, Kino! Ia agora mesmo pedir-te para o fazer, pois estou prestes a atingir o meu limite.", assim me responde de forma queixosa.

Momento mais certo não podia haver, pois vejo lá ao fundo da estrada um pequeno coberto com uns bancos. Devagar devagarinho chegamos ao nosso destino e, à mesma velocidade, desmonto Hermes. Lanço um olhar para o assento e reparo que está completamente encharcado em suor. Vou ter que o limpar antes de prosseguirmos com a viagem…

"Que é, Kino?", pergunta-me ele de forma concisa e clara.

"Nada, Hermes, estava a apreciar o teu belo corpo."

"Ah, obrigado, Kino, elogias-me com as tuas palavras e com os teus olhos! Pena que não possa dizer o mesmo do teu nem com palavras, pois estaria a mentir, nem com olhos, pois não os tenho."

Já estou habituada a estas palavras assassinas do meu companheiro, portanto não lhes ligo muito…

. . .

"Não, Kino, não tem nada a ver com o teu peso.", assim mo diz Hermes, num tom brincalhão.

"… Okay, Hermes, okay."

Depois de olhar para a minha esbelta cintura, viro-me para uma estranha máquina em que acabo de reparar. Parece um frigorífico com um vidro enorme em vez duma porta, cheio de bebidas em latas, todas elas dispostas por várias prateleiras em várias filas. Cada fila tem as latas acomodadas de forma individual. No lado direito do aparelho está um teclado numérico e uma ranhura para moedas. Agora que reparo, cada tipo de bebida está identificado por um número… Estou a ver, é um frigorífico automático. Fascinante.

Olho para o lado da ranhura e noto uma lista relativamente curta que indica os tipos de moedas aceites. Curiosamente, noto que não aceita moedas do país vizinho. Porque será? Não é algo que me perturbe muito, pois ainda tenho alguns trocos doutros países, o suficiente para conseguir pagar uma bebida. Insiro as moedas pela ranhura e escrevo no teclado a bebida que quero, uma que nunca tinha visto nas minhas viagens. A máquina rapidamente reage e, num ápice, deixa cair uma lata. Abro a pequena porta no fundo do frigorífico e retiro de lá a bebida.

A lata tem uma forma cilíndrica. Numa das bases, noto numa certa patilha metálica. Não há instruções, portanto assumo que funcione de forma semelhante a uma granada. Seguro na lata com a minha mão esquerda e tento puxar a patilha com o meu indicador direito… E nada, para além duma dor latejante no meu dedo. Talvez tenha de empurrar em vez de puxar?... Exatamente. O líquido é gaseificado e, claro, depois de tanto agitar a lata, ele salta para fora, molhando-me a mão toda. Tem uma cor castanha, parece agradável. Lambo a minha mão esquerda e logo de imediato, o sabor doce invade-me as papilas gustativas. Talvez seja demasiado doce…

"Isso parece gasolina! Deixa-me provar, Kino!"

"Acredita, estás melhor servido com gasolina do que com isto…"

"Se tu o dizes!"

De bebida na mão, sento-me num longo banco de madeira, já sem alguma da tinta que o embelezava, mas ainda de pé e firme. Agora que tenho toda a costa à minha frente é que noto o quão bela toda esta zona é. O Sol, ainda forte a esta hora do dia, refletido na água marítima, vê a sua imagem espelhada a ser distorcida pela leve, leve ondulação. Golfinhos dançam não muito longe da costa, libertando de quando em quando uns guinchos agradáveis. Gaivotas voam à procura de presa e, quando a encontram, estraçalham-na com o seu bico e apreciam a refeição no topo de candeeiros submergidos até a meio.

Pensando que tinha visto algo a mais devido à minha sonolência, esfrego os olhos com vigor e foco-os no sítio onde as gaivotas estão. Não tenho dúvidas, aquilo é um candeeiro, no meio do mar. Achando isto verdadeiramente estranho, acabo a bebida num só trago e cuidadosamente coloco a lata num caixote do lixo que está ao lado da máquina de bebidas. Hermes reage à minha súbita mudança de atitude.

"Não me deixes aqui sozinho, leva-me! Lembras-te da última vez que deixaste isolado por causa da tua curiosidade?"

"Lembro-me, um cão selvagem apareceu e urinou na tua roda da frente."

"Foi horrível, Kino…"

Já sabes que não consigo resistir a esse teu tom de voz frágil, Hermes. Recolho o seu descanso, agarro-o pelo guiador e começo a o empurrar. Olho para os dois lados da estrada, para me certificar que não vem ninguém e num passo acelerado atravessamos. Desço vagarosamente a pequena, mas íngreme, elevação que separa a berma da estrada e a praia e paro o Hermes a meio caminho da água, pois não quero que ele toque sequer em água salgada. Tenho a certeza que ele acha o mesmo, pois não reclamou. Aproveito e tiro a minha roupa toda, pousando-a cuidadosamente no assento sujo do Hermes, ficando apenas em roupa interior.

"Oooh, então despes-te à minha frente, Kino?! Nem quero olhar!"

"Preciso do fazer para entrar na água."

Começo a caminhar em direção à água. Acelero o passo. Estou já a correr. Tenho que admitir que já não tomava banho numa praia há imenso tempo, não consigo deixar de me sentir exitada. Paro no ponto de rebentamento da água para ver a sua temperatura e noto que está um pouco fria, mas não muito. Depois de ganhar alguma coragem, apenas a quantidade suficiente, mergulho na água. Dum momento para o outro, sinto todo o suor que escorria pelo meu corpo a desprender-se da minha pele, juntamente com a sujidade entranhada no meu cabelo.

Volto para a superfície e olho em minha volta. O meu único ponto de referência é o candeeiro. Olho para o céu. O Sol foi encoberto por uma nuvem pouco espessa, fiquei sem luz suficiente para ver o que está dentro de água. Começo a nadar como um sapo em direção ao meu destino, não muito depressa, pois ainda me vou afastar um pouco da costa, quero conservar as minhas energias. À medida que me aproximo, sou abordada por todo o tipo de peixes, que muito se divertem em mordiscar as minhas pernas. Lembro-me repentinamente do velho da bomba de gasolina falar sobre estes peixes, de como eles "comem pele morta, deixando-a limpa e jovem". Agora que penso nisso, acho que ele me falou disso como se eu precisasse de tal coisa.

Chego finalmente ao candeeiro e, com extrema dificuldade, trepo-o. As gaivotas não estão nada felizes com a minha inesperada visita, mas naturalmente têm mais medo de mim do que eu delas, visto eu não ter medo algum, portanto reagem ao meu enxotamento com os meus braços. Fogem vagarosamente, sem antes largarem alguns dejetos precisamente onde estavam pousadas. Não me aflige muito, ainda há espaço suficiente para me sentar. Chegada ao topo do poste metálico, esforço-me para manter equilíbrio enquanto me sento.

Olho para a água e continuo sem conseguir ver o que esconde dentro de si. O Sol ainda está escondido por detrás da nuvem, mas parece que se vai mostrar dentro de instantes. Ah, cá está ele. A luz que ele emite cega-me por momentos. Afinal das contas, estava ainda há momentos a olhar para a sua nuvem companheira. Assim que recupero a minha visão, pouso os meus olhos na superfície do mar.

Sob a superfície da água está escondida uma enorme cidade, esculpida por mão humana, que se estende até ao fundo do horizonte. Prédios de vários andares tentam chegar ao nível das águas, casas de vários tamanhos contentam-se com o fundo do mar e as ruas de alcatrão, outrora cheias de movimento de carros e pessoas, são agora utilizadas por peixes que nem sequer tentam chegar à mesma velocidade que aquelas bestas mecânicas pelas quais eles passam. Sim, não foram só os edifícios que se submeteram à força incrível das águas... Carros, motas, caixas de correio, frigoríficos como aquele que encontrei há pouco, tudo isto está lá ao fundo, num sono eterno, desfeito em mil pedaços, extremamente mal conservados, presas para algas e peixes curiosos.

Morte tresanda naquelas ruas. A cidade parou no tempo, mas os seus habitantes prosseguiram a sua vida no além. Olho para um dos carros e noto, com alguma clareza, restos de corpos, já quase sem carne, e a que resta está já podre, verde, solta, impregnada de estilhaços de vidro e barras de metal. Um adulto e duas crianças, empaladas pelo chassis do carro em que estavam, talvez na cabeça, talvez no peito. Olho para a entrada dum prédio e noto, com alguma clareza, restos de corpos, já sem carne, só ossos. Todos os ossos estão empilhados à frente do que me parece ser uma pastelaria, pois há um sinal por cima da porta com um bolo impresso.

As ondas chegaram a esta cidade costeira rapidamente, inesperadamente. Nota-se claramente, pelos estragos nos edifícios que as ondas vieram do fundo do horizonte. Pelos mesmos estragos, posso dizer que elas chegaram a uma velocidade muito superior à máxima atingida pelo Hermes, o que não me espanta, pois a Natureza sempre teve um motor e um combustível muito melhor: raiva. Pelo menos é esse o sentimento que consigo retirar deste cenário distante, conservado.

Consigo ver para onde as pessoas correram quando viram o monstro que as engoliu. Algumas enfiaram-se dentro de casas, morreram todas, outras dentro de viaturas, morreram todas, o resto dirigiu-se na minha direção, para tentarem chegar ao topo desta colina. Quantas pessoas terão olhado para o Céu, à procura dalguma ajuda? Quantas pessoas terão corrido na direção das ondas, com esperança que elas a engolissem suavemente? Não sei, não quero saber...

Agora que reparo, o poste onde estou sentada é suposto iluminar uma estrada comprida, que começa algures dentro da cidade e termina nuns rochedos da praia. Será que alguém sobreviveu? Talvez...

Atrás de mim, lá do fundo, oiço a voz de Hermes, transportada pela leve brisa que acaricia os meus cabelos molhados, os meus pelos impregnados de sal. Conversa com uma rapariga jovem, perto da minha idade, de pele branca como a neve, de cabelos verdes como uma alface, vestida com uma saia comprida, muito ao estilo do meu país, uma blusa simples e bela, que revela apenas o suficiente do seu corpo. Ao longo da cintura, noto que ela tem um cinto de pele de algum animal nativo a esta região. Preso ao cinto, nas suas costas, está o coldre da sua arma, dum modelo que não consigo identificar daqui.

Do lá do fundo, ela avista-me. Com a sua mão direita acena-me energeticamente, como que excitada por ver outra pessoa nestas redondezas. Não me espanta que esta zona tenha poucos turistas, praias em que a água esconde tragédias passadas como esta geralmente influenciam a escolha deles. Não querendo deixar Hermes à mercê de alguém que não conheço, atiro-me para a água e nado o mais rápido possível.

Depois de certificar que a minha roupa interior não esconde areia alguma no seu interior, mergulho uma última vez dentro de água para puxar o cabelo para trás e, suavemente, saio dela. O areal é grande... Divirto-me a olhar para trás para ver o rasto de pequenas gotas que caíram do meu corpo enquanto ando em direção ao meu companheiro.

Estou já a meros pés desta estranha pessoa que apareceu do nada. A sua cara, definida por traços leves, denota uma certa paz interior, uma felicidade tangível. Não sinto qualquer mal desta pessoa, largo a minha mão da minha cintura, onde tenho uma pequena faca escondida no lado de dentro das minhas cuecas. Hermes, como sempre, sente-se completamente à vontade com uma pessoa que não conhece de lado algum, uma atitude que esperava dele.

"Kino, Kino, olha, uma pessoa!", fala Hermes, num tom brincalhão.

Esta estranha rapariga, de forma confiante, esboça um sorriso leve e estende-me a mão. Presumindo que, neste país, um cumprimento se faça através dum aperto de mão, imito o gesto e agarro a sua mão. Mal ela começa a agitar a minha, eu certifico-me que retribuo o esforço em igual intensidade. Sei que, em alguns países, o primeiro impacto ao se conhecer alguém novo depende muito da força com que se realiza este gesto. Findado o curto, mas forte, aperto de mão, com o qual ela parece estar feliz, ela introduz-se.

"Kino, certo? Olá, o meu nome é Alfa!"

"Prazer em conhecê-la."

"Oh! Se calhar é melhor eu esperar que se vista!"

Mal acaba de dizer isto, vira-me as costas.

"Força, Kino! Não espreitarei!"

"Ora essa, Alfa, não precisa de se virar. Ainda tenho de esperar que o meu corpo seque. Como pode ver, estou encharcada em água."

Volta-se a virar para mim, desta vez fá-lo com uma cara de preocupação.

"Mas se não se secar com alguma coisa, o sal vai-se acumular todo na pele..."

"Acredite, há coisas bem piores que um pouco de sal na minha epiderme."

"Tenho uma ideia. Venha até minha casa tomar banho! Aliás, pode mesmo passar a noite! Eu não me importo minimamente!", assim mo diz abanando levemente, mecanicamente, os seus braços. Que movimentos tão precisos, porém, cheios de vida.

Hermes não hesita em responder a uma proposta tão apetitosa como esta, apesar de não ter estômago.

"A sério, Alfa?! Oh wow, eu também posso dormir em tua casa?"

"Claro, Hermes! Uma mota tão simpática como tu é sempre bem vinda!"

Em dois curtos saltos, Alfa coloca-se extremamente perto de mim, como se estivesse a tentar convencer-me a aceitar a sua proposta através do seu charme.

"Que diz, Kino?"

Olho em minha volta discretamente, sem rodar a minha cabeça, para me certificar que ela não me está apenas a distrair para que alguém nos apanhe desprevenidos e nos roube. Pouco temo pela perda das minhas posses, mas não toleraria perder Hermes. Vejo que nada de ameaçador se encontra nas redondezas, pondero na proposta de Alfa. Efetivamente, no mapa, nada há nas redondezas que esteja disposto a receber um par de viajantes, e se há a possibilidade de evitar dormir no selvagem, porque não a aproveitar.

"Se não for muito incómodo..."

"Maravilha! Pois bem, então guardemos a conversa para a noite e prossigamos para minha casa!"

"Precisas de te carreguemos até lá, Alfa? Não me importo de te levar no meu assento!", diz educadamente Hermes.

"Não, Hermes, eu vim até cá na minha pequena, amarela vespa!"

Alfa imediatamente aponta na direção da berma da estrada, onde se encontra um pequeno ciclomotor amarelo. Tenho de admitir que o design é extremamente agradável... Intemporal, até. O farol redondo no meio do guiador, o assento grande que permite assumir uma posição confortável, todos os pequenos elementos do veículo trabalham em conjunto para manter uma postura única.

"Alfa, tens uma companheira belíssima! Qual é o seu nome?"

"Oh Hermes, ela é minha, nem penses sequer em conquistar o seu coração!"

Se Hermes tivesse uma cara, ela estaria vermelha, disso tenho a certeza.

"V-vá, vá, carrega-me até la acima, Kino, rápido!"

"Sim, velho companheiro, já o faço. Deixa-me vestir primeiro, já estou seca."

Alfa já saiu do areal e já está perto do seu veículo, abaixada ao lado do largo pneu da frente. Pela sua cara, não me parece que esteja satisfeita com o estado dele. Será a pressão? Será que já está muito gasto? Por muito importante que a condição do pneu lhe seja importante, ela teve o cuidado de se virar para mim e perguntar

"Quer que eu vá empurrando o Hermes para cá para cima?..."

"Deixe-se estar, eu preciso dele aqui por enquanto."

"Ah, por causa das roupas, certo? Eu entendo."

Hermes não parece satisfeito com esta razão.

"Eu não sou um cabide, Kino!"

Dou um leve soco no farol da frente, para ele aprender a não me responder de forma tão mal-educada.

"Ouch! Hey!"

"Da próxima fica calado."

Começo por colocar a minha camisa branca, com algumas manchas de café na parte da frente, provocadas por um pequeno, desinteressante acidente hoje de manhã. Seguem-se as minhas calças que, tal como a minha camisa, estão sujas. Infelizmente estas estradas são muito irregulares e, como tal, estão cheias de pequenas poças de lama. Na altura em que passei pela poça que me sujou as calças, convenci-me de que esta mancha sairá eventualmente, mas agora não tenho tanta certeza... De seguida vem o fino casaco que tão bem condiz com as minhas calças, mas que, para horror meu, está infestado de pulgas de areia. Abano o casaco vigorosamente, o que capta a atenção de Alfa, que estava ocupada a limpar o assento da sua mota.

"Passa-se alguma coisa, Kino?", pergunta-me ela com uma voz preocupada.

"Nada, Alfa, só um pequeno caso de pulgas de areia."

Sacudi o casaco com tanta força que uma das pulgas caiu mesmo em cima do meu nariz. Tenho de admitir que nunca fui grande fã de insetos, mas apesar disso, posso dizer com a certeza absoluta que este é o inseto mais feio que eu alguma vez vi. Uma das suas antenas, involuntariamente, começa a fazer cócegas aos pelos do meu nariz, o que me faz espirrar.

"Vá, Kino, vista-se antes que se constipe!"

Alfa está nitidamente preocupada. Desejando que todo este abanar do casaco tenha sido suficiente para me ver livre dos insetos todos, rapidamente coloco-o. De forma igualmente rápida, meto o chapéu na minha cabeça e coloco os meus óculos de condução. Não me posso esquecer ainda do meu cinto, onde tenho todas as minhas pequenas bolsas de munições e, claro, as minhas armas. Finalmente, e apesar de estar tempo quente, visto o sobretudo pesado, castanho, gasto, sujo, companheiro fiel das minhas viagens sem fim.

Olho para onde o descanso de Hermes se está a apoiar e noto que todo o seu corpo se afundou um pouco na areia. De forma brusca, recolho o descanso e empurro, com toda a minha força, Hermes pela berma acima. Chegados cá acima, reparo que a Alfa está já sentada na sua mota, em posição de partida, com a chave na ignição. Penso que ela quer provocar o Hermes.

"Hermes, aprecia o som de arranque da minha motorizada!", diz Alfa de forma emocionante, soando mesmo como uma pequena criança.

Ao som do tilintar doutras chaves residentes do mesmo porta-chaves, Alfa roda a sua mão. A mota imediatamente reage, começa a tremer por todos os lados, o motor gagueja de forma doentia, como se estivesse com falta de ar e de gasolina. Enquanto a mota tosse de forma controlada e precisa, Alfa tira do meio do guiador um pequeno fio metálico, com uma ponta cilíndrica, coloca-o dentro da sua boca, mas não o engole. Fá-lo de forma gulosa, apesar de ter excretado pouca saliva.

Estranho, a mota não tem qualquer indicador. Nenhum velocímetro, nenhum indicador de rotações, temperatura, distância percorrida...

Após o que pareceu uma eternidade, a mota finalmente contém a sua tosse. Nesse momento, o seu motor faz tamanho som medonho que julguei que tivesse avariado, aparentemente estou errada, pois gases começam a sair do tubo de escape, ao início de forma hesitante, agora firme e estavelmente. Alfa roda o acelerador e, sem surpresa por esta altura, a mota reage de forma estrondosa.

Hermes está absolutamente chocado.

"Alfa, Alfa! Como é que a tua companheira faz mais barulho a andar que eu?"

"Não sei!!", diz ela, por entre gargalhadas malvadas.

Como um criador maluco, ela puxa pelo seu veículo ao máximo. A roda traseira cospe gravilha por todo o lado, guincha descontroladamente, quer partir, correr pela estrada.

"Vá, Kino, não quero ficar para trás!", berra-me Hermes.

"Certo, certo."

De forma muito mais limpa e educada, o corpo de Hermes começa a rosnar, indicando-me que está pronto para a viagem.

"Aí vamos nós! Kino, Hermes, sigam-me!"

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Parte 2

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O Sol de fim de tarde, vermelho, alaranjado, lá no fundo do horizonte, está já a esconder-se desta terra, por detrás de uma de sete colinas que nos rodeiam em volta. Talvez não seja o Sol que se esconde, mas sim a terra em si, pois sei que o Sol está sempre no mesmo sítio.

"Venham, Kino, Hermes, deixem-me só levantar o portão."

Eu e Hermes estamos parados à entrada do terreno de Alfa, um sítio um pouco elevado, curvo, mas plano suficiente para se atravessar facilmente. A nossa marcha é impedida por um pequeno portão em forma dum simples triângulo retângulo, pouco eficaz em manter criaturas de fora do terreno.

Alfa empurra o pequeno portão para o lado de dentro do terreno. Enquanto o faz, noto na placa suspensa no poste que suporta o portão. Aparentemente, Alfa gere uma pequeno café, "Café Alfa". Nome apropriado para este adorável local no fim do mundo, tendo em conta o nome da gerente. Uma suave aragem acaricia-nos, mas a placa pouco gosta de carinhos tão bondosos, pois range de forma medonha. O nome é a única coisa legível nela inscrita, pois o símbolo do estabelecimento há muito que desapareceu.

"Alfa, vais deixar aqui a tua companheira?"

A voz de Hermes traz-me de volta ao que nos rodeia. O portão está já aberto, mas quer a toda a força voltar para a sua posição original. Alfa segura-o sem fazer grandes esforços, aguarda a nossa entrada na sua terra. Ao meu lado está a mota de Alfa parada, silenciosamente, com as chaves penduradas na ignição.

"Eu deixo-a sempre aí. Nunca lhe aconteceu uma única coisa. Raios, nem os animais selvagens se atrevem a rasgar o assento dela!"

Desmonto Hermes suavemente e desligo o seu motor com um movimento vagaroso da chave. Olho para o assento e noto o quanto eu suei durante a viagem até cá, pois ele está alagado em suor. Realmente, sentia que as minhas cuecas estavam coladas ao meu traseiro, mas não julguei que fosse do suor. Mais uma coisa que me faz lembrar do quão ansiosamente espero pelo banho que Alfa me prometeu, para além do cheiro a suor que emano. Verdadeiramente horrível.

Vejo que Alfa está a ficar um pouco cansada de segurar no portão, mas não deixa que esse sentimento se transmita pela sua cara.

"Olhe que as chaves ainda estão na ignição. Quer que as tire?"

Alfa, ao ouvir isto, imediatamente percorre todos os seus bolsos com a sua mão direita, de forma rítmica, nervosa, hesitante. O vazio de todos os seus bolsos aflige-a por momentos, mas rapidamente se recompõe, provavelmente lembrou-se do que lhe acabei de perguntar. Num ápice, esboça um enorme sorriso e, sem qualquer hesitação, responde-me, com uma voz suave.

"Atire-mas, Kino, se fizer o favor."

"Claro."

Retiro as chaves da mota de alfa, como se de Hermes se tratasse, as chaves tilintam com o movimento, apesar dele ter sido carinhoso, as chaves tilintam na minha mão, pois brinco com elas entre os meus dedos enquanto meço a distância daqui até Alfa, as chaves tilintam enquanto voam pelo ar, em direção a quem elas pertencem, as chaves silenciam-se na mão do destinatário.

"Bom lançamento, Kino!"

Obrigado, Hermes.

Agarro no meu companheiro com alguma força e empurro-o para o interior deste território desconhecido. Antes do fazer, verifico se ainda tenho a minha pistola semi automática na cintura, colada às minhas costas. Faço-o de forma muito discreta, mas mesmo assim, Alfa repara e reage imitando o meu gesto. Um olhar desafiante percorre todo o meu corpo, à procura de algum sinal de que iria utilizar a minha arma de fogo, mas assim que largo a minha mão da minha arma, ela volta a me imitar, retira a sua mão da sua arma também.

"Relaxe, Kino, take it easy."

Não entendi tudo do que ela disse, mas entendi o suficiente.

Passado o portão, eu, Hermes e Alfa juntos caminhamos em direção ao pequeno café, uma casa toda feita em madeira, de dois pisos, virada para nascente. Virado para Sul está um belo alpendre... Um belo alpendre. Nele senta uma pequena mesa redonda de madeira, claramente feita para estar no exterior duma casa, rodeada de cadeiras dobráveis, de aspeto frágil, mas limpas. A parede que está encostada ao alpendre tem, na sua base, canteiros onde pequenas plantas trepadeiras ainda lutam por saírem do seu berço, de tão jovens que são.

A porta de entrada está protegida por um pequeno telhado. Ao lado direito da porta está uma pequena cerca de madeira, alta, nada ornamentado ou coberto de plantas, apenas constituídas por simples tábuas de madeira que, na ponta, arredondam. Presumo que a cerca sirva apenas para esconder os caixotes de lixo e coisas igualmente desagradáveis, pois ela não percorre a casa toda, só a entrada. Ao lado esquerdo da porta está uma pequena placa com o nome do estabelecimento e com o seu símbolo, um peixe que parece ter sido desenhado por uma criança. Agradável, charmoso até.

Uma placa pendurada na porta indica que a casa está fechada, mas Alfa rapidamente vira-a ao contrário antes de destrancar a porta. Apesar da fechadura ter cedido à chave, a porta recusa-se a mexer, talvez esteja empenada. Alfa encosta o seu ombro direito e esforça-se por empurrar a porta, não resulta. Alfa começa a tentar arrombar a porta, não resulta. Talvez seja melhor ajudá-la...

"Alfa, precisa de ajuda?"

"Ah, se pudesse ajudar, agradecia, Kino!"

Ainda atordoada de tanto encontrão na porta, Alfa afasta-se dela a cambalear, mais parece que está a tentar dançar ao ritmo do latejar do seu ombro. Sem grandes cerimónias, retiro o meu revólver do seu coldre e aponto para uma das duas dobradiça que seguram a porta à parede da casa. Antes que ela possa reclamar, primo o gatilho da arma. Nesse preciso momento, sinto o forte coice da arma a se espalhar pelo meu braço todo, pelo meu peito, pelo meu corpo todo, uma sensação à qual estou já habituada há muito tempo... Uma certa vibração excitante, que faz com que todo o meu corpo enrijeça de prazer, mas ao mesmo tempo intimidante, que me traz de volta à crua realidade. Apesar da força astronómica que esta minha arma exerce nos seus alvos, algo que só é gerado graças ao líquido explosivo contido no interior de cada bala, a dobradiça manteve-se no sítio, apesar de agora estar já danificada o suficiente para ceder a um fraco encosto de ombro.

"Tente de novo, Alfa."

Olho para Alfa e noto que ela está no chão, petrificada de medo. Terá sido o disparo da arma? Só pode. Estou tão habituada ao som que já nem sequer o julgo como assustador. Talvez devia ter avisado Alfa das minhas intenções, mas agora que o mal está feito, não vale a pena pensar mais no assunto. Estendo-lhe a minha mão direita muito vagarosamente, para não a assustar ainda mais, ela aceita a minha ajuda, agarra-se a mim, puxo-a para mim com força apenas para a colocar de pé.

"Estou um pouco desiludido, Kino, pensava que isso ia voar fora da parede!"

A voz de Hermes descongela Alfa. Sentindo as suas mãos sujas, ela sacode-as uma na outra, sacode ainda a parte de trás da sua bela saia, sacode de novo as suas mãos.

"Kino, para a próxima avise antes de disparar, por favor.", assim mo diz, numa voz autoritária, claramente irritada.

"Certamente."

"Não te preocupes, Alfa, ela só usa a sua arma quando não resta nenhuma outra opção."

A voz alegre de Hermes parece estar a acalmar Alfa, felizmente para mim.

"Se tu o dizes, Hermes. Sei que tu não me mentirias."

Ela parece ter simpatizado muito rápido com Hermes... Pelo menos aparenta tê-lo feito mais rapidamente que qualquer outra pessoa que tenha interagido com ele nesta nossa longa viagem.

Já recomposta desta peculiar situação, ela volta a tentar abrir a porta com ajuda do seu ombro, mas infelizmente fá-lo sem calcular bem a quantidade de força a aplicar, ou talvez simplesmente se tenha esquecido que disparei precisamente para a dobradiça defeituosa, o que não me espantaria. A porta abre-se com um enorme estrondo, som que é acompanhado pelo emitido pela queda de Alfa no chão. Coloco-me imediatamente ao seu lado, pergunto-lhe se está bem.

"Ah, isto não é nada, Kino!", recusa qualquer ajuda da minha parte e rapidamente se coloca de pé.

Deixo o compartimento escuro e volto para o lado de Hermes, pois tenho de limpar as suas rodas sujas, cheias de terra seca, com um pouco de lama à mistura. Dirijo-me para uma de duas malas verdes colocadas de lado na roda traseira de Hermes, nomeadamente a direita, e desengato o fuzilhão da fivela da tira de pele que fecha a mala. O interior da mala está extremamente bem organizado, apesar do seu exterior estar completamente imundo, algo que nem o para-lamas da roda consegue evitar, infelizmente. No lado esquerdo da mala, tenho o objeto que procurava, ou vá, várias réplicas do mesmo objeto. Do molhe de toalhas brancas tiro uma à sorte e agacho-me para limpar a roda traseira com ela. Lembro-me que não vou chegar muito longe na minha limpeza se não retirar a carga toda de cima de Hermes primeiro. Com isto em mente, coloco a toalha no meu ombro direito e dirijo-me para o interior do café, já todo iluminado.

O café em si é um local extremamente simples, mas charmoso. Encostado à parede da esquerda estão duas mesas, ambas de dois lugares, ambas enfeitadas com umas jarras que contêm uma flor de plástico, imitam uma espécie que desconheço, ambas equipadas com um belo frasco de porcelana, presumo que contenha açúcar. À minha direita está o balcão, polido suficiente para refletir a minha cara. Deste lado está também uma porta misteriosa, que presumo que seja a casa de banho. Por detrás do balcão encontra-se Alfa, a colocar um avental de serviço imaculado, com bordados a enfeitá-lo. Depois de atar os cordões do avental com um nó igual ao que se dá aos cordões dum sapato, ela vira-se para mim com um simples rodopio, todo o seu cabelo, a sua roupa, roda ao sabor do seu corpo.

"Seja bem-vinda, Kino!", a sua voz energética dá-me a entender que já me desculpou do que se passou há pouco.

"Obrigado, Alfa."

Hermes não está contente por estar de fora desta troca de palavras.

"E eu, Alfa?!"

"Bem-vindo a minha casa, Hermes! Kino, não hesite em trazê-lo para cá para dentro!"

"Quanto a isso, preciso que me indique um sítio para colocar as malas que o Hermes está a carregar."

"Ah, claro! Siga-me, Kino."

Ela aproxima-se da porta misteriosa. Do interior do único bolso do avental, ela tira uma chave, usa-a para destrancar a porta. Alfa faz-me sinal para entrar primeiro, mas logo de seguida apercebe-se que que a divisória está às escuras, portanto ela rapidamente retifica o convite, pede-me para esperar um segundo. Sem medo do escuro, ela entra e liga as luzes. Alfa volta para o lado da porta e convida-me de novo a atravessar a porta, algo que faço de bom grado.

"Este é o lado da casa onde moro. Peço desculpa pela desarrumação!"

Estou agora no corredor de entrada da casa. À minha frente encontra-se uma nova porta fechada. Alfa guia-me até uma cortina branca, discreta, mas completamente opaca. Afastada a cortina, prosseguimos em frente e entramos na divisão principal da casa, a cozinha, equipada com uma pequena mesa individual, uma banca com um fogão de desenho similar aos de gás que encontrei noutros países, presumo que funcione da mesma forma, um frigorífico e um pequeno móvel que guarda a loiça toda.

"Ora essa, a casa está tudo menos desarrumada."

"Ah, alivia-me um pouco ouvir isso!"

Umas escadas de madeira convidam-nos a subir até ao segundo andar. Vou ter de lhe perguntar depois onde fica a casa de banho. Cada degrau que subo reage ao meu mísero peso corporal com um som agudo, um chiar muito próprio de madeira, de agonia e prazer, adoro este som. Estranhamente, as escadas não reagem aos passos de Alfa. As pessoas que vivem em casas com escadas acabam sempre por desenvolver uma estranha técnica de escalada silenciosa que só funciona com as das suas casas.

O andar superior da casa encontra-se cheio de todo o tipo de coisas, desde móveis a pequena quinquilharia. Encontra-se, também, às escuras. Vejo Alfa já um pouco à minha frente, na profundeza do negro, a apalpar o teto da casa. Não querendo ficar muito para trás, aventuro-me na direção dela. Sem querer, toco numa pulseira de metal com o meu pé direito. A pulseira sai disparada na direção de Alfa, bate nas suas costas. Sentindo metal em tal parte do seu corpo, ela paralisa duma forma extremamente perturbante, nenhuma parte do seu corpo se atreve a mexer uma única unidade de medição, ela está até a suster a respiração.

Entendo o porquê de tal reação, preciso de esclarecer este bizarro mal entendido.

"Desculpe, Alfa, não reparei que a pulseira estava ao alcance dos meus pés."

Sentindo o calor do significado das minhas palavras, ela volta a animar o seu corpo. Como se duma máquina automática se tratasse, ela começa-se a mexer duma forma um pouco mecânica, vira-se para mim e olha-me nos olhos com uma expressão amável. Vejo que a consegui acalmar, o que me satisfaz.

"Ah, não tem nada que pedir desculpa! Isto só aconteceu por causa da minha desarrumação! Nunca achei tempo para arrumar esta tralha toda, apesar de tempo ser algo que não me falta!", leva a sua mão direita à parte de trás da sua nuca e coça-a enquanto fala comigo.

Noto que, por cima dela, encontra-se uma lâmpada isolada, pendurada do teto apenas por um mísero fio e acompanhada apenas por um interruptor. Alfa olha para a lâmpada, eleva o seu braço, carrega no interruptor, luz começa a aparecer, de início fraca, mas com muito pouco tempo, sua intensidade cresce. A escuridão recuou para os cantos deste andar, deixando-nos mais descansadas.

Sem se virar de costas, com mãos a agarrar a sua cintura, Alfa começa a olhar em todas as direções, na esperança de encontrar um lugar bom para eu colocar os meus pertences. Seus olhos fixam-se em algo atrás de mim, viro-me suavemente, noto que ela olha para um móvel tapado com um lençol branco verdadeiramente grande. Estranhamente, aquele sítio em específico parece estar relativamente limpo, pois lá não noto nenhuma camada espessa de pó sobre o chão. Talvez seja por causa da janela que se encontra na parede mais próxima.

"Olhe, Kino, ali tem espaço que chegue?"

Entre a parede e o móvel há um espaço vazio, grande suficiente para colocar todas as minhas coisas. Está perto da janela, o que pode vir a ser um problema se começar a chover, mas como duvido que tal aconteça, rapidamente respondo à pergunta de Alfa.

"Sim, Alfa, deverá chegar."

"Maravilha! Eu ajudo-a a carregar as coisas até aqui."

"Agradeço. Um par de mãos extra certamente ajudará. Não é muita coisa, mas é tudo um pouco pesado..."

"Vamos, então."

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Parte 3

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"Ooooh, tanto fumo a sair daí, Alfa!"

A voz de Hermes invade o espaço entre mim e Alfa. Depois de pousarmos as malas lá em cima, limpei os pneus de Hermes e trouxe-o cá para dentro, para o nosso lado, aqui dentro da cozinha. Estamos aqui pois Alfa está agora mesmo a tratar do nosso jantar, ali no fogão, com o exaustor a sugar todos os cheiros e todos os fumos que saem das frigideiras. O barulho que o aspirador faz é ensurdecedor, mal dá para falar, mas para Alfa deve ser um preço pequeno a pagar para evitar que o cheiro a comida se espalhe pela casa, especialmente pelo quarto.

Antes de começar a cozinhar, ela mostrou-me o resto da casa. A segunda porta trancada que enfrentei ao entrar neste lado da casa dá acesso ao enorme e único quarto da casa, todo ele decorado com pequenos enfeites relacionados com peixes, imensos pendurados nas paredes, uns poucos na estante, um sozinho sobre a secretária cheia de material de pintura, resto de outros inacabados no caixote do lixo. Ela criou-os todos à mão, os panos, as esculturas pantafaçudas, os bordados.

Visitámos logo de seguida o sanitário, que possui nada de especial, apenas uma sanita e um lavatório. Um pequeno armário no lado direito da sanita provavelmente guarda o material de limpeza desta pequena divisória. Por fim, Alfa mostrou-me a casa de banho, cuja entrada é protegida por uma outra cortina, sendo esta de cor azul bebé. Atravessada a cortina, encontra-se outro lavatório, cheio de pequenos objetos de higiene pessoal e de beleza. Do lado esquerdo da cortina, encontra-se a porta para a divisão em si, um cubículo relativamente grande, equipado com uma banheira espaçosa e um chuveiro com um tubo enorme. Ao lado da banheira, toda uma seleção de champôs enfeita o lugar, todos eles de tamanho diferente, uns pequenos e outros grandes, todos eles de cor diferente, uns verdes e outros brancos. À saída, quase que escorregava com uma barra de sabão rosa, mas Alfa felizmente apanhou-me o braço antes de cair.

"Ah, isto não é nada, Hermes!"

A voz de Alfa traz-me de volta ao presente.

"Pena que não consigas cheirar a comida, Hermes, pois está com um aroma verdadeiramente especial."

"Oooh, a sério, Kino?"

"Kino, agradeço o elogio!"

"Há coisas que se devem mencionar, Alfa, falo apenas a verdade da situação."

"Ah, obrigado!"

Apesar dela não se ter virado para mim nesta troca de palavras, tenho a impressão que a sua cara está vermelha. Porque será?

"Mas Alfa, só te vejo a meter vegetais. Porquê?"

"Vá, Hermes, que coisa a perguntar..."

"Chiu, Kino, deixa-me ouvir a resposta da Alfa."

Este tipo de pergunta pode ser bastante insultuosa em alguns países, pois pode dar a ideia ao anfitrião que os seus convidados não vão ficar satisfeitos com aquilo que lhes vai oferecer. Às vezes nem é tanto por isso, mas mais porque essa pergunta vá contra alguma crença religiosa.

Alfa para imediatamente de mexer nos utensílios culinários e olha-me diretamente.

"Ah, agora que penso nisso, eu nem lhe perguntei o que queria comer, Kino!..."

Estou a ver que, por aqui, este tipo de perguntas garante uma reação do primeiro tipo que descrevi. Ou se calhar esta pergunta é mais uma coisa de boa educação do que outra coisa qualquer...

"Não se preocupe, Alfa, eu não tenho preferências quanto a comidas. As minhas viagens não me permitem ter luxos desses."

Aliviada por ouvir estas palavras, ela volta-se para o seu laboratório e continua a experiência.

"Ainda bem que assim é, pois o jantar está já pronto. Ora vamos cá ver..."

Alfa desliga a chama dum dos bicos do fogão, aquele que estava encarregue de perpetuar a temperatura do azeite no máximo, e de cima dele retira uma frigideira. O azeite ainda dança feliz, de cima para baixo e de baixo para cima, em pequenas gotículas efervescentes e bolhas de ar, tenta refrescar-se fora da frigideira, a comida, essa continua no lugar, cozinhada, pronta para consumo.

Todo um conjunto de vegetais que conheço e desconheço cai lentamente da frigideira para o meu prato, sem fazer barulho. As corres berrantes próprias deste tipo de comida chocam violentamente com a cor branca da loiça de porcelana, fazendo realçar os vegetais ainda mais. As suas formas e os seus cheiros assaltam-me os sentidos duma forma exacerbada, talvez pela fome que sinto, talvez por ser algo cozinhado dentro duma casa, talvez por não ter sido eu a cozinhar. A razão é indiferente. O que me interessa agora mesmo é que quero comer tudo o que está neste prato.

No entanto, tenho de esperar que Alfa se sente no seu lugar, no outro lado desta ridiculamente pequena mesa metálica, de cor de prata. Parece que tudo se está a processar mais devagar do que é normal, vejo a porção de Alfa a aterrar no seu prato, pedaço a pedaço, primeiro descolam-se da frigideira, de seguida rolam pelo ar em queda livre, finalmente embatem na loiça, o impacto é tão forte para a comida que até ressalta, por fim gasta todas as suas energias, jaz morto no mar de branco da porcelana. Alfa recua para o balcão de culinária graciosamente, imitando uma bailarina conhecida cujo nome me escapa, com frigideira em punho, já sem comida, apenas com um pequeno resto de azeite. O utensílio é colocado na pia e é imediatamente encharcado de água, através do uso da torneira, a água, ao bater no seu alvo, imediatamente evapora, liberta um som sibilino. Com três pequenos saltos, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo, pés junto, Alfa volta para o lado da sua cadeira, coloca o seu pé direito para a frente e roda sobre si própria, as suas roupas e os seus cabelos pouco tempo depois seguem o seu corpo, meia volta depois o pé atinge a cadeira, ela é arrastada para trás com o resto do movimento. Antes de poder terminar a pirueta, ela começa a descair na direção da cadeira e antes que se pudesse equilibrar, aterra no assento. Ao mesmo tempo que verifica se o seu cabelo está ainda penteado, ela arrasta a cadeira até à mesa.

Agarro nos meus talheres. Alfa imita-me e antes de começar a atacar a comida...

"Bom apetite!"

"Bom apetite.", presumo que seja um costume local, achei que era melhor repetir o que ela disse.

Alfa come de  forma lenta e graciosa, cortando a sua comida em pequenos pedaços antes dos engolir sem fazer um único som. Infelizmente, as minhas maneiras à mesa há muito que desapareceram, mas esforço-me para pelo menos não me sujar, pois não quero aborrecer Alfa a lavar as minhas roupas. Bem sei que, se tal coisa acontecesse, por muito que me oferecesse para realizar a tarefa, ela forçaria-me a deixá-la fazê-la. Verdade seja dita, a minha camisa, juntamente com as minhas calças, está já bastante suja da viagem, portanto o mais provável é que ela me faça um pedido destes antes de nos deitarmos...

A sua boca não abre muito enquanto ela mastiga, mas noto que o seu interior não é... normal. O seu céu da boca tem uma cor diferente da do normal, os dentes não parecem ser naturais, a língua tem uma forma um bocado invulgar. Não posso observar mais, pois não quero que Alfa pense que estou a olhar para ela, tenho a certeza que ela prefere que não desvie o meu olhar da sua comida.

"Que é, Kino, tenho alguma coisa na minha boca?", pergunta ela, com uma cara sorridente, como se já estivesse à espera de tal coisa de minha parte.

"Notei que a sua boca não aparenta estar muito saudável..."

"Ahahah, não se preocupe, Kino! Hm, eu entendo a sua confusão, pois afinal, a minha boca é um pouco fora do comum. Acredite, ela está longe de estar pouco saudável, tenho-lhe a dizer até que nunca esteve tão saudável como hoje!"

"..."

"O que é, não vai perguntar o porquê de eu ter dito tal coisa?"

"Sou o tipo de pessoa que não faz perguntas, aceito as coisas como elas são. Aceito justificações, mas faço-o apenas quando me são dadas."

"De verdade?... Eu nunca conseguiria fazer tal coisa. A minha curiosidade ensinou-me já tanto sobre o mundo... e sobre mim própria..."

"Entendo a sua opinião."

"O mundo é demasiado belo para não se conhecer. Não é por isso que viaja?"

"..."

"Ah, peço desculpa, não devia ter feito tal pergunta..."

"Não se preocupe, Alfa, é uma questão válida."

"Obrigado por compreender, Kino. Como sou dona dum café, tenho o hábito de me envolver com os meus clientes. Sabe como é, se os conseguir agradar, eles acabam sempre por voltar."

"Entendo perfeitamente. Notei também que esta zona é habitada por umas estranhas máquinas vendedoras de bebidas."

"Ah, já sei das máquinas que está a falar! Aquelas à beira do sítio onde nos encontrámos, certo?"

"Exatamente."

"Foi uma das coisas que restou da grande inundação que aconteceu há muitos anos atrás..."

"Uma grande inundação."

"Foi o que disse, Kino, sim. A praia que estava a visitar era, há cerca de cinquenta anos atrás, a entrada duma grande cidade."

"Eu reparei."

"Imagino que sim, afinal de contas, estava no topo dum poste de iluminação! Seria engraçado se esse tipo de coisas crescessem naturalmente no mar! Ahah."

"Certamente."

"Parecia ser uma bela cidade, sabe. Na altura em que a cidade existia, eu não a cheguei a visitar. Mas já a vi, do topo duma colina, no início da noite. Por volta dessa hora, todas as luzes artificiais espalhadas pelo que resta da cidade ligam-se ao mesmo tempo, dando vida à morte. Não consigo explicar porquê, mas não consigo de deixar de sentir uma certa tristeza sempre que estou a essa hora na colina..."

"É apenas natural que sinta tal coisa."

"Não, Kino... Não é natural... É tudo menos natural... Não o é pela mesma razão que é apenas natural que estejamos a comer apenas vegetais, que a minha boca lhe pareça estranha, que trate o Hermes de forma tão informal, que pareça tão nova apesar de estar viva há mais de cinquenta anos."

Um sorriso leve, um olhar distante apontado para o céu lá fora, do outro lado da janela.

"Sou um robô, Kino. O meu modelo é A7M2, uma de três unidades produzidas. Proteínas animais estragam-me os circuitos."

Hermes interrompe a nossa conversa de forma extremamente indelicada.

"Ooooh, Alfa, fantástico! Quem é que te criou?"

"O meu criador é indiferente."

"Oh, vá lá... Bem, podes ao menos dizer quem é o teu dono?"

"O meu dono..."

Hermes a dar novas provas da sua incapacidade de se manter calado. Pego na argola metálica que segurava o guardanapo e atiro-a diretamente para o farol da frente de Hermes.

"Hey, Kino, então!"

"Não faças perguntas indelicadas, seu totó."

Oiço-o a reclamar numa voz muito baixa, presumo que seja para eu não o ouvir.

"Atenta ao que dizes."

"Ceeeeeerto.", assim mo diz numa voz aborrecida.

Volto-me para Alfa. Esta interrupção deixou-a extremamente atrapalhada, não sabe se deve pedir desculpa ou não.

"Não se preocupe, Alfa, esta é apenas a nossa dinâmica de equipa."

"A-Ah, entendo..."

Um certo silêncio subitamente instalou-se no quarto, de tal forma pesado que nem o Hermes se atreveu a quebrar. Este tipo de situação não me incomoda, mas parece afetar Alfa.

"E que tal continuarmos a refeição antes que ela fique fria?"

Freneticamente, ela apanha o garfo que está pousado no lado esquerdo do prato e tenta penetrar uma rodela de batata com ele, mas falha o alvo. O utensílio percorre o prato todo, produzindo um som extremamente agudo. Surpreendida, ela deixa cair o garfo, o que causa mais barulho. Desiludida com si própria, ela suspira e deixa os seus braços cair da mesa.

"Peço desculpa..."

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Kino + Yokohama! Tinha que ler isto. Só li a primeira parte e parece-me muito bom. Leio o resto quando tiver tempo. Pena o autor já não andar por cá...



Okay, acabei de ler tudo. Está aqui um texto com uma utilização muito hábil das palavras. As descrições estão muito bem feitas. A história não é muito elaborada mas as referências nela serviram para me relembrar destas duas séries fantásticas especialmente o episódio em que a Alpha vê a cidade submersa iluminar-se à noite. Muito bom!

 

Lopson (se ainda andares por aqui), tens gostos muito refinados. Gosto disso! Kino e Yokohama não são séries para o comum dos fans. Então pessoas que tenham visto as duas séries ainda mais raro é, e por isso é que ninguém comentou (acho eu).

 

Já agora, se não viram Kino no Tabi, não leiam! Tem um grande spoiler!  <-- acho que devias ter mencionado isso (a mim não me afectou, já tinha visto ambos os animes).

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